Gorduras lácteas
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As gorduras são biomoléculas essenciais ao metabolismo, responsáveis por funções como fornecimento de energia, absorção de vitaminas lipossolúveis e proteção de órgãos. Divididas em saturadas, mono e poli-insaturadas, elas impactam a saúde de diversas maneiras. A gordura láctea oferece benefícios como a redução do risco de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e certos tipos de câncer. Uma nova abordagem considera a matriz alimentar, indo além da simples análise de nutrientes isolados.
As gorduras, biomoléculas insolúveis em água e pertencentes à classe dos lipídios, têm como principais componentes os triacilgliceróis. São macronutrientes essenciais para o metabolismo humano, cuja ingestão total para adultos deve ser limitada a até 30% de toda energia diária consumida. Elas desempenham diversas funções: fornecem nove quilocalorias por grama, são essenciais para a absorção das vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K), para a formação das membranas celulares, são precursores de hormônios esteróides, auxiliam na regulação da temperatura corporal e protegem órgãos vitais contra choques e lesões. A composição e estrutura dos lipídios afetam a absorção e metabolismo deste macronutriente, vitaminas lipossolúveis e outros nutrientes essenciais e não essenciais.
As gorduras são divididas em saturadas, monoinsaturadas e poli-insaturadas, cada uma afetando a saúde de maneiras diferentes. Gorduras saturadas, geralmente sólidas à temperatura ambiente, vêm de fontes animais e vegetais, como manteiga e óleo de coco. Já as gorduras insaturadas, líquidas à temperatura ambiente, são principalmente provenientes de fontes vegetais, como óleos de oliva e girassol. Além de influenciar a qualidade dos alimentos, as gorduras afetam aparência, textura, sabor, emulsificação, valor nutricional e densidade energética, com suas propriedades e estrutura impactando diretamente as características dos alimentos.
As gorduras podem vir de fontes naturais ou industrializadas. As gorduras industrializadas estão associadas ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, o que destaca a importância de conhecer a origem e o tipo de gordura nos alimentos para uma nutrição adequada. Nesse sentido, conforme a RDC Nº 632/2022, da ANVISA, a partir de primeiro de janeiro de 2023, se tornou proibida a produção, importação, uso e comercialização de óleos e gorduras parcialmente hidrogenados em alimentos, bem como de produtos que os contenham em sua formulação. Ácidos graxos trans, por exemplo, podem se formar naturalmente no estômago de ruminantes (presentes no leite) ou ser produzidos industrialmente através da hidrogenação parcial de óleos vegetais.
Entre as gorduras naturais, a do leite é notável por sua complexidade e alto valor nutricional. A gordura do leite é composta por mais de 400 tipos diferentes de ácidos graxos, que possuem propriedades biológicas importantes. Esses ácidos graxos formam glóbulos de gordura distintos, com um núcleo rico em triacilgliceróis e uma membrana contendo vários componentes bioativos.
No processamento de derivados lácteos, a gordura do leite é indispensável para a fabricação de diversos produtos, tanto o leite pasteurizado quanto o ultrapasteurizados são classificados conforme o teor de gordura, sendo integral, semidesnatado ou desnatado. Para o leite integral, o teor mínimo de gordura é 3,0g/100g; no semidesnatado, varia entre 0,6g/100g e 2,9g/100g; e no desnatado, o máximo é 0,5g/100g. A padronização do leite permite a criação de produtos de baixo teor de gordura, como iogurtes e bebidas lácteas.
Essa tendência da indústria de modificar os teores de gordura nos laticínios também reflete as diretrizes dietéticas tradicionais, que recomendam o consumo de laticínios com baixo teor de gordura para reduzir a ingestão de calorias e gordura saturada, com o objetivo de manter um peso saudável e diminuir o risco de doenças cardiovasculares.
No entanto, os alimentos são mais do que a soma de calorias e seus componentes individuais, como gordura, carboidratos e proteínas; eles formam matrizes complexas que afetam a saúde de maneiras variadas. A matriz alimentar é a estrutura física que interage com os nutrientes de um alimento, resultando em efeitos que não se manifestam quando os componentes estão isolados. Recomendações baseadas apenas em valor energético ou teor de gordura não consideram esses efeitos complexos, que influenciam o controle de peso, respostas hormonais, metabólicas e a saúde da microbiota. Alimentos integrais têm estruturas que afetam a digestão e absorção, e essas interações não são totalmente previsíveis apenas pelas informações dos rótulos nutricionais.
Nesse sentido, o valor nutricional da gordura do leite se destaca pelos benefícios à saúde fornecidos aos consumidores, não apenas pelos componentes lipídicos individuais, mas pelas consequências das gorduras alimentares no contexto de uma dieta geral. Ela contém lipídios biologicamente ativos, como vitaminas lipossolúveis, triacilgliceróis, e ácidos graxos (incluindo CLA e ácidos graxos de cadeias curtas e longas). Estes componentes exercem efeitos positivos sobre diversos tecidos do corpo, como intestinais, hepáticos e neurológicos.
A ingestão de gordura láctea tem sido associada à redução do risco de vários tipos de câncer, como colorretal, mama e próstata, devido a componentes como o CLA (ácido linoleico conjugado) e o ácido butírico. O CLA, um ácido graxo poli-insaturado com isômeros como o cis-9 trans-11, está presente em quantidades significativas em produtos lácteos comparado a outros alimentos. Esse isômero tem mostrado benefícios à saúde, incluindo redução da formação de ateromas, melhora da sensibilidade à insulina, diminuição da gordura corporal e modulação da resposta imunológica.
Estudos indicam que a gordura láctea pode ter efeitos positivos na saúde cardiovascular e na redução do risco de diabetes tipo 2. O Framingham Offspring Study mostrou que a gordura saturada de fontes lácteas está associada a melhorias nos biomarcadores de risco cardiovascular. Uma meta-análise revelou que o consumo total de laticínios está ligado a uma menor incidência de doenças cardiovasculares e derrame, com o queijo mostrando efeitos particularmente benéficos. Em contraste, suplementos de cálcio foram associados a maiores riscos cardiovasculares, enquanto produtos lácteos integrais tiveram um efeito positivo na lipemia pós-prandial.
Ademais, o consumo de laticínios está inversamente associado ao risco de diabetes tipo 2, especialmente em pessoas com mais de 60 anos. Produtos como iogurte e manteiga têm uma associação significativa com menor risco de diabetes. No Brasil, um estudo com idosos mostrou que a ingestão elevada de laticínios reduz a probabilidade de diabetes não diagnosticada, com produtos fermentados apresentando a associação mais pronunciada. A presença de ácidos graxos saturados, como o ácido mirístico, pode mediar esses efeitos.
Sob essa perspectiva, cabe ainda citar uma metanálise que avaliou de forma sistemática as associações entre o consumo de diferentes tipos de produtos lácteos e o risco de sobrepeso ou obesidade, hipertensão e diabetes tipo 2. O estudo encontrou uma associação linear inversa, com o risco de sobrepeso ou obesidade reduzindo em 25% para cada aumento de 200g/dia de laticínios totais, 7% para laticínios com alto teor de gordura e 12% para leite. O consumo de iogurte também foi associado a uma redução de 13% no risco para cada incremento de 50g/dia. Quanto ao diabetes tipo 2, foi observada uma associação não linear entre o consumo de laticínios totais e a redução do risco, especialmente para quantidades menores que 350g/dia. Nesse contexto, a cada aumento de 200g/dia, o risco de DM2 caiu em 3%, enquanto o consumo de iogurte reduziu o risco em 7% para cada 50g/dia. No entanto, não houve associação significativa entre o consumo de leite ou laticínios com baixo teor de gordura e o risco de DM2. Em relação à hipertensão, a análise apontou uma redução mais acentuada do risco para consumos inferiores a 310g/dia de laticínios totais. Cada aumento de 200g/dia resultou em uma redução de 5% no risco de hipertensão. Laticínios com baixo teor de gordura e leite também mostraram uma redução de 6% no risco para cada aumento de 200g/dia, enquanto produtos com alto teor de gordura, iogurte e queijo não apresentaram associação significativa com a hipertensão.
Além das vantagens citadas, componentes da matriz láctea, como cálcio, fósforo, MFGM (membrana globular de gordura), reduzem a absorção intestinal de gordura por meio da formação de complexos insolúveis de cálcio com ácidos graxos e do aumento da excreção de ácidos biliares nas fezes e ainda interferem na absorção de colesterol. Estudos demonstram que esses mecanismos estão associados a uma maior excreção fecal de gordura e contribuem para uma resposta lipídica atenuada após o consumo de produtos lácteos que são ricos nessas substâncias.
A membrana do glóbulo de gordura do leite (MFGM) é rica em lipídios polares, como fosfolipídios e esfingolipídios, que oferecem diversos benefícios à saúde. Estes componentes ajudam a regular o metabolismo lipídico, melhoram a microbiota intestinal e reduzem inflamações. Estudos indicam que os fosfolipídios do leite podem inibir a absorção de colesterol e triglicerídeos, promovendo uma melhor saúde cardiovascular e prevenindo doenças crônicas.
Pesquisas indicam que o pó de soro de leite enriquecido com MFGM reduz significativamente colesterol e triacilgliceróis em comparação com placebos, embora o efeito sobre o colesterol LDL seja menos consistente. Comparações entre MFGM e outras fontes de fosfolipídios não mostraram diferenças significativas nos níveis de lipídios sanguíneos. Isso sugere que o MFGM e os fosfolipídios do leite têm um papel importante na modulação da absorção de gorduras e na influência dos perfis lipídicos, destacando a importância da matriz láctea completa em vez de seus componentes isolados.
Os lipídios polares do leite, como a esfingomielina, têm propriedades anti-inflamatórias que ajudam a reduzir marcadores inflamatórios e a manter a integridade da barreira intestinal, protegendo contra inflamações sistêmicas e condições como a doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD). Além disso, eles podem melhorar o desenvolvimento cerebral infantil e a saúde intestinal. No entanto, mais pesquisas são necessárias para confirmar esses benefícios em humanos e definir doses terapêuticas eficazes.
Por conseguinte, a abordagem tradicional da nutrição, que analisa nutrientes isoladamente, tem sido inadequada para entender a complexidade das interações alimentares e seus impactos na saúde. Diretrizes antigas frequentemente rotulam as gorduras como prejudiciais, desconsiderando a importância e a diversidade das gorduras. Focar apenas na quantidade total de gordura ignora a matriz alimentar, que inclui a estrutura e compostos bioativos dos alimentos. As gorduras lácteas, por exemplo, têm efeitos positivos no metabolismo e na saúde, desafiando a visão reducionista que considera todas as gorduras como prejudiciais. A pesquisa atual sugere a necessidade de uma abordagem mais integrada, que avalie a qualidade dos alimentos no contexto de uma dieta equilibrada e das necessidades individuais, para desenvolver diretrizes dietéticas mais precisas e eficazes.
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