Queijos: fontes de compostos bioativos
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Introdução - Definição, Origem e Funções dos Compostos Bioativos
Os compostos bioativos são um conjunto diversificado de moléculas naturalmente presentes nos alimentos ou formadas durante o processamento e a digestão, capazes de exercer efeitos fisiológicos benéficos que vão além do valor nutricional básico. Esses compostos têm sido amplamente estudados pelo potencial de modulação de processos metabólicos e fisiológicos relacionados à prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, como as cardiovasculares, as metabólicas e as inflamatórias. Englobam diferentes classes químicas, incluindo, notadamente, lipídios, peptídeos, compostos fenólicos e vitaminas. Estes, por sua vez, apresentam ações antioxidantes, anti-inflamatórias, antimicrobianas, imunomoduladoras e cardioprotetoras.
Entre as diversas matrizes alimentares, o leite e seus derivados se destacam como importantes fontes naturais de compostos bioativos. A composição complexa do leite, rica em lipídios e proteínas, permite a formação de moléculas com funções fisiológicas específicas, que podem estar presentes originalmente ou ser geradas por transformações bioquímicas durante o processamento. Nos queijos, processos como fermentação, maturação e digestão promovem alterações nas frações lipídica e proteica, resultando na liberação de ácidos graxos e peptídeos bioativos de reconhecido potencial funcional.
Os peptídeos bioativos derivados das proteínas do leite, particularmente das caseínas e das proteínas do soro, são formados pela ação enzimática durante a maturação dos queijos. Esses fragmentos apresentam atividades antioxidantes, antimicrobianas, antihipertensivas e imunomoduladoras. Tais compostos contribuem para a funcionalidade dos queijos, associando o consumo desses produtos a potenciais efeitos protetores à saúde humana.
A compreensão dos compostos bioativos presentes em queijos e de seus mecanismos de formação é essencial para valorizar esses alimentos como fontes naturais de moléculas funcionais. Pesquisas recentes têm demonstrado que a relação entre composição, processamento e bioatividade influencia diretamente o potencial fisiológico desses produtos, evidenciando que a interação entre lipídios, peptídeos e compostos fenólicos pode conferir aos queijos propriedades benéficas que ultrapassam o valor nutricional tradicional. O estudo desses compostos contribui para o avanço no desenvolvimento de alimentos funcionais e para a promoção da saúde com base em evidências científicas.
Fontes e formação de compostos bioativos
No leite e seus derivados, as proteínas como as caseínas e as proteínas do soro (β-lactoglobulina, α-lactalbumina e lactoferrina), são as principais precursoras dos peptídeos bioativos. A formação desses compostos ocorre por meio da hidrólise proteica, processo que quebra as ligações peptídicas liberando fragmentos menores de proteínas com efeito bioativo. Essa quebra pode ocorrer por três vias principais, sendo elas de forma natural no leite cru ou pasteurizado, devido à presença de enzimas endógenas; durante a fermentação e maturação dos queijos, pela ação de enzimas microbianas (como peptidases produzidas por Lactobacillus helveticus, Lactococcus lactis e Streptococcus thermophilus); e durante a digestão gastrointestinal, pela ação das enzimas pepsina, tripsina e quimotripsina.
No processamento de queijos, a ação das proteases microbianas é um dos principais fatores que promove a liberação dos peptídeos bioativos. Esses microrganismos expressam um conjunto de enzimas que quebram proteínas, incluindo endopeptidases e aminopeptidases, que hidrolisam as proteínas lácteas, gerando uma grande diversidade de peptídeos de baixo peso molecular. O prolongamento da maturação favorece ainda mais essa liberação, aumentando o conteúdo de peptídeos antioxidantes e anti-hipertensivos. Por exemplo, os tripeptídeos Val-Pro-Pro (VPP) e Ile-Pro-Pro (IPP), liberados durante a fermentação por Lactobacillus helveticus, têm comprovada ação inibitória da enzima conversora de angiotensina (ECA), auxiliando na regulação da pressão arterial.
A hidrólise das caseínas ocorre principalmente pela quebra das ligações entre aminoácidos hidrofóbicos e aromáticos, que resultam em peptídeos com alta atividade biológica. Já as proteínas do soro, como a β-lactoglobulina, geram fragmentos bioativos com atividade antioxidante e antimicrobiana. Essas reações podem ser intensificadas por enzimas endógenas (como a quimosina) e pelas enzimas microbianas durante a fermentação.
A digestão gastrointestinal constitui uma etapa essencial na formação dos peptídeos bioativos. As enzimas digestivas humanas liberam fragmentos de proteínas do leite que, ao resistirem à degradação completa, mantêm suas funções biológicas no trato intestinal e até mesmo na circulação sistêmica. Esses peptídeos podem exercer ações locais, como regulação da microbiota intestinal, ou sistêmicas, após absorção no intestino.
Os peptídeos bioativos também podem estar naturalmente presentes no leite cru ou pasteurizado, embora em menores concentrações, resultantes da hidrólise parcial das proteínas lácteas durante a ordenha e o armazenamento. O aquecimento, dependendo da intensidade, pode tanto aumentar a liberação de peptídeos por desnaturação das proteínas quanto reduzir a atividade de outros compostos sensíveis.
Em síntese, os queijos são matrizes alimentares ricas em peptídeos bioativos devido à combinação de fatores, ação enzimática microbiana, tempo de maturação e degradação proteica progressiva. Esses peptídeos, derivados principalmente das caseínas e das proteínas do soro, são moléculas de grande interesse científico e tecnológico, pois conferem propriedades funcionais aos produtos lácteos e podem contribuir para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, consolidando os queijos como alimentos funcionais.
A composição proteica do leite, particularmente no que se refere às variantes genéticas da β-caseína, conhecidas como A1 e A2, tem influência direta na formação e na atividade dos peptídeos bioativos presentes no queijo e em outros derivados lácteos. Essa diferença decorre de uma substituição de aminoácido na posição 67 da cadeia da β-caseína: na variante A1 ocorre uma histidina, enquanto na A2 há uma prolina. Essa pequena diferença estrutural altera o ponto de clivagem enzimática durante a digestão e, consequentemente, o tipo de peptídeo liberado.
Durante a digestão gastrointestinal, a β-caseína A1 é hidrolisada liberando um fragmento de sete aminoácidos denominado β-casomorfina-7 (BCM-7), um peptídeo com atividade opióide. Esse peptídeo se liga a receptores μ-opioides no trato gastrointestinal e no sistema nervoso, podendo modular o trânsito intestinal e a resposta inflamatória. Estudos têm associado a liberação de BCM-7 a efeitos pró-inflamatórios e desconforto gastrointestinal em indivíduos sensíveis, sugerindo que o consumo de leite A1 possa estar relacionado a sintomas semelhantes aos da intolerância à lactose, mesmo na ausência de deficiência de lactase.
Em contraste, a β-caseína A2 apresenta resistência à clivagem enzimática no mesmo ponto da cadeia, o que impede ou reduz significativamente a liberação da BCM-7. Dessa forma, o leite A2 e seus derivados tendem a gerar um perfil de peptídeos bioativos diferente, com maior predominância de fragmentos não opióides, o que está relacionado a melhor tolerabilidade digestiva e menor potencial inflamatório.
No processo de maturação e fermentação de queijos, as enzimas microbianas continuam degradando as proteínas do leite, inclusive a β-caseína, liberando diferentes peptídeos bioativos secundários. Em queijos produzidos com leite A2, há tendência à formação de peptídeos com propriedades antioxidantes, antihipertensivas e antimicrobianas. Já no leite A1, além desses peptídeos benéficos, ocorre a presença de BCM-7, que, em indivíduos sensíveis, pode interferir na absorção intestinal e na resposta imune local, afetando indiretamente a biodisponibilidade de outros peptídeos funcionais.
Portanto, a diferença estrutural da β-caseína impacta tanto a quantidade quanto a qualidade dos peptídeos bioativos formados durante a digestão e a maturação do queijo. Queijos elaborados a partir de leite A2 podem apresentar melhor perfil funcional e fisiológico, pois a ausência de BCM-7 favorece a predominância de peptídeos bioativos de ação antioxidante, anti-hipertensiva e imunomoduladora, contribuindo para uma resposta pós consumo mais favorável em termos de digestibilidade, inflamação e bem-estar gastrointestinal.
Lipídios bioativos no queijo
Os queijos são matrizes alimentares ricas em lipídios que, além de sua função estrutural e energética, exercem papéis fisiológicos importantes, sendo reconhecidos como fontes de compostos bioativos. Esses lipídios, denominados lipídios bioativos, compreendem uma variedade de moléculas com funções metabólicas e regulatórias no organismo, incluindo o ácido linoleico conjugado (CLA), a esfingomielina e os componentes da membrana do glóbulo de gordura do leite (MGGL). Tais compostos têm sido amplamente estudados devido à sua capacidade de modular processos biológicos, influenciar o metabolismo lipídico e contribuir para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis.
Entre os lipídios bioativos mais relevantes presentes no queijo destaca-se o ácido linoleico conjugado (CLA), um grupo de isômeros do ácido linoleico que se forma principalmente pela bio-hidrogenação bacteriana no rúmen de ruminantes e, em menor grau, durante a fermentação e maturação dos queijos. O teor de CLA nos queijos é influenciado por múltiplos fatores, como a alimentação dos animais, o tipo de leite e as condições de processamento e maturação. Em especial, a presença de culturas lácticas e o tempo de maturação favorecem o acúmulo de isômeros biologicamente ativos, como o cis-9, trans-11, que apresenta propriedades anticarcinogênicas, antiaterogênicas e moduladoras da composição corporal. Esses efeitos estão relacionados à capacidade do CLA de interferir na diferenciação de adipócitos, na oxidação de ácidos graxos e na resposta inflamatória, contribuindo para o equilíbrio metabólico e a redução do risco de doenças cardiovasculares. Dessa forma, o queijo, como fonte natural de CLA, representa um alimento funcional potencialmente benéfico à saúde, especialmente quando consumido de forma moderada e dentro de um padrão alimentar equilibrado.
Outro lipídio bioativo de destaque nos queijos é a esfingomielina, componente essencial da membrana celular e da MGGL. Presente principalmente nas frações polares da gordura do leite, a esfingomielina desempenha papel fundamental na integridade estrutural das membranas e na sinalização celular. Estudos recentes demonstram que esse composto exerce efeitos neuroprotetores, modulando processos de mielinização e prevenindo danos oxidativos em células nervosas, além de participar do controle do metabolismo lipídico e da inflamação sistêmica. A ingestão de produtos lácteos ricos em esfingomielina tem sido associada à melhora do perfil lipídico e à redução de marcadores inflamatórios, sugerindo que o consumo de queijos pode contribuir para a manutenção da saúde cerebral e cardiovascular.
A membrana do glóbulo de gordura do leite (MGGL) constitui outra fonte importante de lipídios bioativos no queijo. Essa estrutura, composta por fosfolipídios, esfingolipídios e glicolipídios, reveste os glóbulos de gordura, conferindo-lhes estabilidade e propriedades biológicas singulares. Durante o processamento do leite e a maturação do queijo, parte desses componentes é preservada, mantendo sua atividade funcional. A MGGL atua na modulação da absorção de lipídios no intestino, na integridade das barreiras epiteliais e no equilíbrio da microbiota intestinal. Além disso, seus fosfolipídios e esfingolipídios apresentam ação antioxidante e anti-inflamatória, o que pode contribuir para a regulação do metabolismo lipídico e para a redução do risco de disfunções metabólicas.
Esses lipídios bioativos reforçam que o impacto dos queijos na saúde humana não pode ser avaliado apenas pelo teor de gordura total, mas deve considerar a complexidade de sua matriz. A presença de compostos como o CLA, a esfingomielina e os lipídios da MGGL confere ao queijo propriedades funcionais que vão além do valor nutricional, atuando na modulação do metabolismo lipídico, da inflamação e de processos oxidativos. Dessa forma, o consumo equilibrado de queijos pode contribuir positivamente para a saúde metabólica e cardiovascular, destacando o papel desses alimentos como potenciais aliados na promoção da saúde dentro de padrões alimentares equilibrados.
Tecnologias e métodos aplicados
A extração e a purificação dos peptídeos bioativos derivados de proteínas lácteas, como as caseínas e proteínas do soro, envolvem diferentes métodos físico-químicos e biotecnológicos. As técnicas clássicas incluem cromatografia líquida de alta eficiência (HPLC) e espectrometria de massa acoplada à cromatografia líquida (LC-MS), que permitem separar, identificar e quantificar peptídeos específicos com base em suas propriedades moleculares e de polaridade. Além disso, a ultrafiltração é amplamente utilizada para concentrar frações peptídicas com peso molecular inferior a 10 kDa, favorecendo a recuperação de compostos bioativos com alta atividade antioxidante e antihipertensiva.
Métodos enzimáticos controlados também são empregados na geração de peptídeos, utilizando proteases específicas como quimosina, tripsina e pepsina para promover a hidrólise parcial das proteínas lácteas em condições otimizadas de pH e temperatura. Essas técnicas permitem modular o tamanho e a sequência dos peptídeos liberados, influenciando diretamente sua bioatividade e digestibilidade. A combinação entre fermentação microbiana e hidrólise enzimática controlada tem sido destacada como estratégia sustentável para aumentar o rendimento de compostos bioativos nos queijos fermentados.
No caso dos lipídios bioativos, como os fosfolipídios e glicoesfingolipídios da membrana do glóbulo de gordura do leite (MFGM), são aplicadas técnicas de microfiltração, centrifugação de gradiente de densidade e extração por fluidos supercríticos, seguidas de purificação cromatográfica. Esses métodos preservam a integridade estrutural dos compostos e evitam a degradação térmica durante o processamento.
Para garantir a estabilidade e eficácia dos compostos bioativos durante o processamento e armazenamento dos queijos, são aplicadas tecnologias de encapsulamento, como o nanoencapsulamento e o microencapsulamento. Esses processos envolvem o revestimento dos peptídeos e lipídios bioativos em materiais protetores, aumentando sua resistência à oxidação, à luz e ao pH gástrico, além de melhorar sua biodisponibilidade intestinal.
Os sistemas de encapsulação mais utilizados incluem biopolímeros naturais (como alginato, quitosana e proteínas do leite) e lipossomas derivados da MFGM, que apresentam excelente compatibilidade e capacidade de formar vesículas estáveis de liberação controlada. Esses lipossomas são compostos por fosfolipídios e glicolipídios de alta estabilidade, capazes de aprisionar compostos hidrofílicos e lipofílicos simultaneamente, tornando-se ideais para a veiculação de peptídeos bioativos e vitaminas lipossolúveis em produtos lácteos.
O uso de sistemas baseados em biopolímeros e MFGM permite melhorar a dispersão e a funcionalidade dos compostos bioativos incorporados ao queijo, preservando suas propriedades sensoriais e nutricionais. A estrutura anfifílica da MFGM, composta por fosfatidilcolina, esfingomielina e glicoproteínas, favorece a formação de emulsões estáveis e atua como emulsificante natural, essencial na estabilização de compostos bioativos sensíveis.
Estudos recentes demonstram que a associação entre técnicas de purificação avançadas e sistemas de nanoencapsulamento lipídico aumenta significativamente a eficiência de entrega e a atividade biológica dos peptídeos em matrizes lácteas fermentadas. Essa abordagem tem impulsionado o desenvolvimento de queijos funcionais, capazes de atuar não apenas como fonte de nutrientes, mas também como veículo para substâncias com potenciais benefícios à saúde, como ação anti-inflamatória, antioxidante e reguladora da microbiota intestinal.
A integração de tecnologias como ultrafiltração, cromatografia líquida de alta resolução, micro e nanoencapsulamento, e uso de lipossomas da MFGM representa uma tendência promissora na biotecnologia de alimentos funcionais. Essas técnicas aprimoram a eficiência da extração, a purificação e a estabilidade dos compostos bioativos presentes nos queijos, contribuindo para o desenvolvimento de produtos lácteos com propriedades fisiológicas otimizadas e maior valor agregado.
Inovação e tendências
O avanço das pesquisas em tecnologia de laticínios tem impulsionado o desenvolvimento de queijos enriquecidos com peptídeos e lipídios bioativos, explorando componentes naturais do leite e estratégias capazes de potencializar suas propriedades fisiológicas. Lipídios como os fosfolipídios da membrana do glóbulo de gordura do leite (MGGL) e ácidos graxos bioativos, além de peptídeos gerados pela hidrólise proteica, têm recebido destaque por seus efeitos antioxidantes, anti-inflamatórios e moduladores do metabolismo lipídico. A incorporação direcionada desses compostos ou o estímulo à sua liberação durante o processamento representa uma das principais tendências na área, ampliando o potencial dos queijos como matrizes funcionais e aproximando-os de aplicações nutricionais avançadas.
Outra linha de investigação relevante diz respeito à aplicação de lipídios bioativos da (MGGL) e de esfingolipídios em baby foods e fórmulas infantis. Esses compostos apresentam funções essenciais no desenvolvimento neurológico, participando de processos de mielinização, sinalização celular e proteção das membranas neuronais. Além disso, exercem papel na modulação da resposta imune, com potencial impacto na maturação do sistema imunológico em lactentes. A adição controlada desses lipídios em fórmulas infantis tem sido investigada como estratégia para aproximar o perfil funcional desses produtos ao do leite materno, contribuindo para o desenvolvimento cognitivo e imunológico durante os primeiros anos de vida.
A exploração de cepas probióticas específicas também se destaca como um campo de intensa inovação, considerando a capacidade dos microrganismos de modular a liberação de peptídeos bioativos durante a fermentação. Cepas emergentes de Lactobacillus e Bifidobacterium têm demonstrado perfis proteolíticos diferenciados, capazes de gerar peptídeos com atividades antioxidantes, antimicrobianas e anti-hipertensivas. Estudos que avaliam o perfil de peptídeos e outros compostos bioativos formados durante a fermentação mostram que essas culturas influenciam diretamente o perfil funcional do queijo, reforçando o papel da seleção microbiana na obtenção de produtos com maior densidade bioativa e impacto positivo na saúde.
As fermentações controladas e dirigidas representam outra tendência relevante, especialmente pelo potencial de otimizar a formação de compostos bioativos por meio do uso de starters com perfis enzimáticos específicos. A escolha estratégica de culturas microbianas, levando em conta sua atividade proteolítica e lipolítica, permite direcionar a liberação de peptídeos e lipídios funcionais ao longo da fermentação e maturação dos queijos. Essa abordagem, apoiada por análises do perfil de lipídios e peptídeos formados ao longo da fermentação, vem ganhando espaço como ferramenta para potencializar a funcionalidade dos produtos lácteos, oferecendo maior controle sobre a produção de compostos benéficos e ampliando o leque de possibilidades tecnológicas no desenvolvimento de queijos funcionais.
Efeitos e desfechos na saúde
Os compostos bioativos presentes nos queijos, especialmente os peptídeos derivados das proteínas do leite e os lipídios da membrana do glóbulo de gordura do leite (MFGM), têm sido amplamente estudados por seus potenciais efeitos benéficos sobre a saúde cardiovascular, metabólica, imunológica e neurológica. Esses componentes são liberados ou modificados durante o processamento, fermentação, maturação e digestão dos queijos, atuando em múltiplos sistemas fisiológicos.
Entre os efeitos mais documentados estão os benefícios sobre o sistema cardiovascular, em especial na redução da pressão arterial e na melhora do perfil lipídico. Peptídeos bioativos como os tripeptídeos Val-Pro-Pro (VPP) e Ile-Pro-Pro (IPP), derivados da hidrólise da β-caseína, apresentam comprovada ação inibitória sobre a enzima conversora de angiotensina (ECA), promovendo vasodilatação e consequente redução da pressão arterial. Esses efeitos foram observados em estudos clínicos com produtos lácteos fermentados contendo VPP e IPP, como o leite fermentado, que mostrou redução significativa da pressão arterial em indivíduos com hipertensão leve. Além disso, peptídeos derivados da lactoferrina e de hidrolisados de soro têm demonstrado modulação positiva do metabolismo lipídico, com possível redução de colesterol total e LDL, embora os resultados ainda sejam inconsistentes e necessitem de confirmação em estudos clínicos de maior escala.
No campo metabólico, os compostos bioativos do queijo também exercem efeitos sobre a microbiota intestinal e o metabolismo da glicose. Peptídeos e lipídios derivados do leite, especialmente os da MFGM, influenciam a composição microbiana intestinal, estimulando o crescimento de bactérias benéficas como Lactobacillus e Bifidobacterium e reduzindo a proliferação de patógenos. Essa modulação microbiana contribui para o equilíbrio da barreira intestinal e para a redução da inflamação sistêmica de baixo grau, característica de distúrbios metabólicos.
Além disso, os hidrolisados proteicos e peptídeos bioativos derivados das proteínas do leite demonstram capacidade de modular a glicemia pós-prandial e a sensibilidade à insulina, por mecanismos que envolvem o retardo do esvaziamento gástrico e o estímulo à secreção de incretinas, como GLP-1 e GIP. Assim, o consumo de queijos ricos em peptídeos bioativos pode auxiliar na regulação da glicose sanguínea e na prevenção de resistência insulínica, especialmente quando incorporados em padrões alimentares equilibrados.
Os compostos bioativos presentes no queijo também apresentam propriedades imunomoduladoras e antimicrobianas. Peptídeos derivados das caseínas e proteínas do soro, como as casocidinas e lactoferricinas, possuem ação antimicrobiana contra bactérias Gram-positivas e Gram-negativas, atuando na inibição da adesão microbiana e na destruição da membrana celular dos patógenos. Frações da MFGM, ricas em glicoproteínas, mucinas e esfingolipídios, desempenham papel fundamental na modulação da imunidade intestinal e sistêmica, favorecendo a resistência a infecções virais e bacterianas. Estudos com modelos animais e ensaios clínicos em humanos demonstram que o consumo de produtos lácteos enriquecidos com MFGM pode reduzir a incidência de infecções respiratórias e gastrointestinais, reforçando o papel dos queijos como alimentos funcionais com potencial de fortalecer o sistema imune.
No sistema nervoso, os peptídeos derivados da β-caseína e os lipídeos estruturais, como os fosfolipídios da MFGM têm recebido atenção pelo seu potencial papel na função cognitiva e na comunicação entre o intestino e o cérebro. Peptídeos opióides como a β-casomorfina-7, liberada a partir da β-caseína A1, interagem com receptores μ-opioides no trato gastrointestinal e no sistema nervoso, podendo modular o trânsito intestinal e a percepção de dor. No entanto, há indícios de que, em indivíduos sensíveis, esse peptídeo possa estar associado a efeitos pró-inflamatórios e desconforto digestivo, o que não ocorre com a β-caseína A2, que tende a não liberar BCM-7 e, portanto, é considerada de melhor tolerabilidade.
A esfingomielina e outros lipídios da MFGM participam da mielinização neuronal e da formação de sinapses, desempenhando papel essencial na função cognitiva e no desenvolvimento cerebral. Ensaios clínicos com fórmulas infantis enriquecidas com MFGM demonstraram melhoria em indicadores de desenvolvimento cognitivo e desempenho atencional em comparação a grupos controle, sugerindo que os componentes lipídicos e peptídicos dos produtos lácteos podem atuar positivamente no eixo intestino-cérebro. Além disso, há evidências de que a modulação da microbiota intestinal por esses compostos influencia a produção de neurotransmissores, como serotonina e dopamina, reforçando a interconexão entre saúde intestinal e saúde mental.
As evidências científicas indicam que os compostos bioativos dos queijos, incluindo peptídeos e frações lipídicas, exercem efeitos multifuncionais sobre diferentes sistemas do organismo. Eles contribuem para a regulação da pressão arterial, a melhora do perfil lipídico e glicêmico, a modulação da imunidade e o suporte à função cognitiva. Embora muitos resultados derivem de estudos experimentais e modelos animais, há um número crescente de ensaios clínicos confirmando esses efeitos, sobretudo em relação à função cardiovascular e ao desenvolvimento neurológico.
Perspectivas futuras
Avanços em tecnologias analíticas vêm expandindo a identificação de peptídeos e lipídios bioativos em alimentos, especialmente com o uso de cromatografia líquida acoplada à espectrometria de massa (LC-MS/MS). Essas abordagens permitem caracterizar a diversidade estrutural de esfingolipídios presentes na MFGM, além de identificar peptídeos derivados principalmente da caseína, muitos deles com potencial atividade fisiológica. Estudos recentes mostram que a variação composicional dos lipídios influencia propriedades funcionais relevantes à saúde, reforçando a necessidade de métodos analíticos mais sensíveis e padronizados para extração, purificação e avaliação da biodisponibilidade dos compostos recém-identificados.
O uso de nanocarreadores surge como estratégia essencial para aumentar a estabilidade e a biodisponibilidade de peptídeos e lipídios bioativos, especialmente frente à degradação gastrointestinal. Diferentes sistemas vêm sendo explorados, incluindo lipossomos, nanopartículas lipídicas sólidas e carreadores poliméricos, que podem conferir liberação controlada e maior permeação intestinal. Para lipídios bioativos, abordagens como microencapsulação e sistemas autoemulsionantes (SEDDS) também se destacam pela eficiência e custo-efetividade. As pesquisas futuras devem priorizar o desenvolvimento de plataformas nanoestruturadas capazes de proteger esfingolipídios sensíveis e otimizar sua absorção, além de estabelecer parâmetros de segurança e toxicidade em modelos pré-clínicos.
O avanço no uso de compostos bioativos depende da consolidação de evidências clínicas que confirmem eficácia, esclareçam mecanismos de ação e estabeleçam doses seguras e funcionais. Lipídios da MFGM, como esfingomielina e gangliosídeos, já demonstram benefícios neurocognitivos em bebês prematuros e efeitos moduladores sobre estresse e memória em adultos. A compreensão dos mecanismos celulares também vem progredindo, com destaque para o papel do “reostato de esfingolipídios” no balanço entre sinalização pró-apoptótica e pró-sobrevivência. Estudos futuros devem integrar análises in silico, modelos celulares e ensaios clínicos para definir ingestão recomendada segundo idade, sexo e condições fisiológicas, além de determinar perfis de segurança para sistemas de entrega nanotecnológicos.
Considerações finais
A perspectiva sobre peptídeos e lipídios bioativos derivados dos queijos indica um campo em desenvolvimento, no qual a caracterização molecular e a compreensão da matriz láctea avançam de forma complementar. As técnicas baseadas em proteômica e lipidômica ampliam a identificação de compostos gerados durante a coagulação, fermentação e maturação, revelando moléculas capazes de exercer efeitos antioxidantes, anti-inflamatórios, antimicrobianos e moduladores do metabolismo lipídico. Esses achados reforçam que a bioatividade não depende apenas da presença isolada dos componentes, mas da interação entre estrutura química, processos tecnológicos e dinâmica digestiva.
Desafios persistem no caminho entre a identificação laboratorial e a aplicação prática. A estabilidade dos bioativos no trato gastrointestinal, a variabilidade entre métodos de produção e a ausência de padronização nas análises ainda dificultam a estimativa real da biodisponibilidade. A incorporação de sistemas inteligentes de liberação, como nanopartículas, encapsulantes alimentares e biomateriais, surge como estratégia promissora para aumentar a proteção, a absorção e a funcionalidade desses compostos, desde que acompanhada de avaliações de segurança e viabilidade tecnológica.
O avanço da área depende do fortalecimento das evidências em seres humanos. Estudos clínicos serão essenciais para confirmar efeitos fisiológicos, esclarecer mecanismos de ação e estabelecer doses efetivas e seguras. A integração entre análises ômicas, tecnologias emergentes e pesquisa clínica representa, portanto, o caminho mais consistente para consolidar o papel dos peptídeos e lipídios bioativos na promoção da saúde e para orientar o desenvolvimento de alimentos que unam qualidade nutricional, inovação e benefício funcional.
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