Queijos, História e Cultura
- nuvlac
- 12 de jun.
- 6 min de leitura

A Alimentação como Elemento Cultural
A alimentação ultrapassa sua função biológica de nutrir: ela é, antes de tudo, um ato cultural. Ao longo da história, os hábitos alimentares foram moldados por tradições, valores e normas sociais, funcionando como marcador de identidade, pertencimento e prestígio. O que comemos, como e com quem comemos expressam vínculos afetivos e coletivos que aprendemos desde a infância e que permanecem na nossa memória e afetividade.
Mesmo em tempos de globalização, em que padrões alimentares tendem à homogeneização, as tradições culinárias resistem, preservando a diversidade cultural. A comida segue como uma das formas mais potentes de expressão identitária, revelando dinâmicas de poder, memórias coletivas e mudanças culturais.
A História do Queijo no Mundo
Entre os alimentos que melhor ilustram essa dimensão cultural, destaca-se o queijo. Sua história remonta ao período neolítico, cerca de 8.000 a.C., quando as sociedades humanas passaram da caça e coleta para a domesticação de animais e agricultura. Inicialmente, o leite era um subproduto da domesticação, mas a necessidade de conservação impulsionou o desenvolvimento do queijo.
As origens da produção queijeira são envoltas em teorias. A narrativa mais comum conta que o queijo foi descoberto acidentalmente, quando o leite transportado em recipientes de estômagos de animais coagularia naturalmente, formando uma massa sólida e nutritiva.
Civilizações antigas, como as que habitavam as margens do Tigre, Eufrates e Nilo, já conheciam e consumiam queijo. A Bíblia, inclusive, faz referência a este alimento, indicando sua presença desde os primórdios da civilização. Provavelmente, os primeiros queijos eram feitos com leite de ovelha.
Na Europa, gregos e romanos desempenharam papel central na disseminação e aprimoramento do queijo. Os romanos, em especial, transformaram o queijo em um alimento valorizado em banquetes e essencial na dieta das tropas, espalhando suas técnicas por diversas regiões do Império, como a Gália e a Helvécia, atual França e Suíça.
Registros arqueológicos confirmam a antiguidade do processamento do leite. Fragmentos de vasos perfurados, datados de cerca de 6.000 a.C., encontrados na atual Polônia, mostram evidências químicas da separação de coalhada e soro, indicando a prática de fabricação de queijo naquela época.
Com o tempo, as técnicas de produção evoluíram, incorporando fermentação e maturação, ampliando sabores e texturas. Esse processo também reduz o teor de lactose, tornando o queijo mais tolerável para populações historicamente intolerantes a esse açúcar.
A Diversidade Europeia de Queijos
A íntima relação entre alimento, cultura e território é especialmente evidente na Europa. França, Itália e Suíça desenvolveram queijos emblemáticos, que expressam a história, o clima e as práticas agrícolas locais.
Na França, surgiram clássicos como o Camembert e o Roquefort, com uma enorme diversidade sensorial que vai do suave ao intenso. Muitos desses queijos possuem denominação de origem protegida, valorizando o saber local e garantindo autenticidade.
A Itália, com mais de 400 variedades, é famosa por nomes como Parmigiano-Reggiano, Gorgonzola e Pecorino. Cada queijo reflete práticas transmitidas oralmente e profundamente enraizadas na vida rural.
A Suíça, por sua vez, é berço de queijos alpinos como Emmental e Raclette, caracterizados por grandes formatos, cascas duras e olhaduras (orifícios causados pela fermentação propiónica). Esses queijos surgiram da necessidade de conservação em regiões montanhosas e frias.
Além disso, o modo de maturação distingue estilos importantes: queijos de casca florida, como Brie, são macios e destinados ao consumo rápido, enquanto os de casca lavada, como Taleggio, possuem aromas mais intensos, graças a técnicas específicas de lavagem durante a maturação.
No entanto, a globalização e a padronização dos processos industriais ameaçam a diversidade e autenticidade desses produtos. Por isso, iniciativas de proteção, como as indicações geográficas e o apoio a pequenos produtores, são fundamentais para garantir a preservação dessas tradições culturais e alimentares.
A Chegada e a Evolução do Queijo no Brasil
No Brasil, a produção de queijo começou com a colonização portuguesa. Antes disso, os povos indígenas não produziam queijos, pois não criavam animais leiteiros. Provavelmente, os primeiros queijos chegaram ao território brasileiro a bordo das caravelas, como alimento da tripulação.
Os bovinos foram introduzidos no século XVI, inicialmente valorizados como força de trabalho nos engenhos de cana-de-açúcar. A produção queijeira se desenvolveu timidamente, sobretudo em pequenas propriedades que buscavam conservar o leite. É possível que a fabricação de queijos tenha iniciado na região de São Vicente, ainda na década de 1530.
Em Minas Gerais, a produção se consolidou no contexto da mineração de ouro, nos séculos XVII e XVIII. O queijo tornou-se solução para conservar o leite e garantir alimento para as populações nas áreas montanhosas. O modo de fazer queijo em Minas foi inspirado na tradição portuguesa da Serra da Estrela, mas adaptado ao clima e aos saberes locais.
Atualmente, Minas Gerais é o maior produtor nacional de queijos, sendo o Queijo Minas reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo IPHAN desde 2008, inicialmente para as regiões do Serro, Canastra e Salitre, e posteriormente estendido nacionalmente.
No Sul, a tradição se fortaleceu com a chegada de imigrantes europeus no século XIX, resultando em produtos típicos como o queijo colonial e o serrano. No Nordeste, o queijo de coalho, resistente ao calor, é produzido desde o período colonial, com destaque para Pernambuco e Rio Grande do Norte. A produção de queijo de cabra também possui longa tradição na região.
O final do século XIX marcou a industrialização do setor, com a fundação da primeira fábrica de laticínios da América do Sul em Minas Gerais, em 1888. Porém, políticas sanitárias rígidas, a partir dos anos 1980, dificultaram a produção artesanal, especialmente de queijos elaborados com leite cru. Felizmente, desde os anos 2000, políticas públicas vêm estimulando o fortalecimento dos pequenos produtores, promovendo segurança alimentar e valorizando os saberes tradicionais.
Considerações Finais
O queijo é muito mais do que um alimento: é um símbolo de identidade, memória e tradição. Sua história milenar revela não apenas a evolução das técnicas alimentares, mas também as adaptações culturais e territoriais de diversos povos ao redor do mundo.
Valorizar queijos tradicionais significa reconhecer o valor dos saberes locais e apoiar sistemas alimentares mais diversos, sustentáveis e culturalmente conectados. As escolhas alimentares podem, assim, contribuir para a preservação do patrimônio alimentar e para uma alimentação mais consciente e informada.
Referências
BECUŃ, Anda Georgiana; PUERTO, Kàtia Lurbe I. Introduction. Food history and identity: food and eating practices as elements of cultural heritage, identity and social creativity. International Review of Social Research, [S.L.], v. 7, n. 1, p. 1-4, 24 maio 2017. University of Bucharest, Faculty of Sociology and Social Work. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1515/irsr-2017-0001.
DONNELLY, Catherine W.. From Pasteur to Probiotics: a historical overview of cheese and microbes. Microbiology Spectrum, [S.L.], v. 1, n. 1, p. 1-12, 31 out. 2013. American Society for Microbiology. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1128/microbiolspec.cm-0001-12.
FARHAT-HOLZMAN, L. Queijo e Cultura: Uma História do Queijo e Seu Lugar na Civilização Ocidental. Comparative Civilizations Review, [S.L.], n. 71, p. 119, 2014. Disponível em: https://scholarsarchive.byu.edu/ccr/vol71/iss71/12
GOBBETTI, M.; NEVIANI, E.; FOX, P. As Características Distintivas da Fabricação Italiana de Queijos. In: Os queijos da Itália : Ciência e Tecnologia. Cham: Springer, 2018. p. [Páginas do capítulo]. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-3-319-89854-4_5.
GRASSENI, C. Italian Cheese in the Global Heritage Arena. In: AYORA-DIAZ, S. (Org.). The Cultural Politics of Food, Taste, and Identity: A Global Perspective. London: Bloomsbury Academic, 2021. p. 73–85. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5040/9781350162754.0011.
KOPPEL, Kadri; CHAMBERS, Delores H. Flavor Comparison of Natural Cheeses Manufactured in Different Countries. Journal of Food Science, [S.L.], v. 77, n. 5, p. 177-187, maio 2012. Wiley. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1111/j.1750-3841.2012.02674.x.
MOHAN, Rajam. Food and Culture: an anthropological analysis. International Journal of Research and Review, [S.L.], v. 10, n. 8, p. 479-484, 17 ago. 2023. Galore Knowledge Publication Pvt. Ltd. Disponível em: http://dx.doi.org/10.52403/ijrr.20230860.
PENNA, Ana Lucia Barretto et al. Artisanal Brazilian Cheeses—History, Marketing, Technological and Microbiological Aspects. Foods, [S.L.], v. 10, n. 7, p. 1562, 6 jul. 2021. MDPI AG. http://dx.doi.org/10.3390/foods10071562.
PINEDA, Ana Paulina Arellano et al. Brazilian Artisanal Cheeses: diversity, microbiological safety, and challenges for the sector. Frontiers In Microbiology, [S.L.], v. 12, n. 1, p. 1-16, 20 abr. 2021. Frontiers Media SA. http://dx.doi.org/10.3389/fmicb.2021.666922.
RODRIGUES, K. M.; GUERRA, P. Culturas alimentares: identidades, trânsitos e metamorfoses. O Público e o Privado, Fortaleza, v. 16, n. 32 jul.-dez, p. 15–38, 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/opublicoeoprivado/article/view/2121.
SALQUE, Mélanie et al. Earliest evidence for cheese making in the sixth millennium bc in northern Europe. Nature, [S.L.], v. 493, n. 7433, p. 522-525, 12 dez. 2012. Springer Science and Business Media LLC. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1038/nature11698.
SILVA, Késia Torres da; MACHADO, Pedro José de Oliveira. ASPECTOS GEOGRÁFICOS, CULTURAIS E SOCIOECONÔMICOS DO QUEIJO MINAS ARTESANAL DAS SERRAS DA IBITIPOCA, MG. Revista de Geografia - Ppgeo - Ufjf, [S.L.], v. 13, n. 1, p. 63-91, 3 maio 2023. Universidade Federal de Juiz de Fora. http://dx.doi.org/10.34019/2236-837x.2023.v13.39106.
Comments